Diálogos da Quarentena

Cinquenta dias de isolamento. Djamila tem receado tirar o telefone do gancho há três. Mas as mortes já passam de seiscentas em  vinte e quatro horas e, mesmo que ele diga que a vida não é um relógio, é  chegada a hora de discar o número dele. É preciso saber se ele ainda vive.
-- Alô, oi, sou eu, a Djamila...
-- Oi, nossa, Djamila... quanto tempo!
-- Anos!
-- Uns vinte?
-- Vinte e três.
-- Nossa, vinte e três anos... E você ainda possui o meu número?
-- Não só o seu número, como o cartão postal que me enviou da primeira vez que esteve em Butão, algumas cartas e dois livros com dedicatórias suas.
-- Puxa, você ainda se lembra...
-- É... eu ainda me lembro...
-- Pois então me diga, como está? Se cuidando?(Cof! Cof! Cof!)
-- Você está tossindo, Alceu?
-- Sim, sim (Cof! Cof! Cof!), mas não se preocupe, eu não tenho saído de casa. Deve ser apenas um resfriado. (Cof! Cof! Cof!)
-- Eu estou bem, continuo sendo roubada pelos burgueses, mas agora ando sendo também uma proletária descolorida, pela ausência da luz solar.
-- Eu te falei para não comprar esse apartamento que as janelas não davam para o Sol... Mas você, bom, você nunca me escutou.
-- Eu era mais roubada ainda pelos burgueses naquela época, Alceu, e você sabe que eu não tinha outra opção que não fosse me convencer de ficar com esse apartamento.
-- (Cof! Cof! Cof!) Ah, os seus olhos devem estar em brasa agora, consigo vê-los, como naquele dia em que você disse que os fundos do sindicato eram para cobrir a greve e mesmo assim a greve acabou. (Cof! Cof! Cof!)
-- A greve acabou, o dinheiro acabou, a gente acabou, Alceu. E você acaba de tossir novamente. Você não acha melhor ir ao médico antes que esse vírus acabe com os poucos anos que ainda lhe restam?
-- "Todos os raciocínios sobre o futuro são?"
-- "criminosos, porque impedem a destruição pura e..."
-- "impedem a marcha da revolução". Émile Zola, Germinal. Eu sabia que você iria lembrar esse trecho. É um dos livro que tens ai com a minha dedicatória não?
-- Sim, é um deles. Decoramos essa frase debaixo da sombra de uma árvore, sentados na grama, para que a gente nunca fizesse prognósticos sobre o futuro. Deu no que deu. Não ficamos juntos. Se eu soubesse, teria decorado a frase ao contrário.

A conversa foi suspensa por uma pesada paz, uma rivalidade quase surda, de quem se ama.

-- (Cof! Cof! Cof!) A gente não ficou juntos porque você não quis, bem sabes... Enfim, eu sinto muito.
-- A gente não continuou juntos porque você promoveu a continuidade da greve para arranjar uma posição no partido, Alceu. Você também bem sabe. Você queria nos levar à miséria!
-- Ah, isso já se vão 23 anos, mulher! Eu era apenas um homem de meia idade, agitado com a ideia de uma sociedade livre. (Cof! Cof! Cof!)
-- Você continua tossindo, Alceu. Eu realmente estou preocupada.
-- Você acha que eu posso morrer?
-- Sim, eu acho!
-- Mas qual diferença faria? Estamos há 23 anos sem nenhum contato... Eu já morri pra você, Djamila.
-- Eu pintei o cabelo...
-- Brigou no trabalho? (Cof! Cof! Cof!)
-- Sim...
-- Então pintou de vermelho. 
-- Castanho médio.
-- Ora, ora! (Cof! Cof! Cof!) então manteve o prumo dessa vez...Não falou tudo que gostaria de falar.
-- Nem metade. Você está com a veneziana aberta? É importante que o ar circule. Estão dizendo na TV.
-- Estão fechadas. 
-- As venezianas?
-- E a TV também.
-- Não acredito, homem!
-- Não tenho medo do além. Nada deve ser pior que isso aqui. Nada pode ser pior que conviver com pessoas sem paixão na vida! Que seja escrever, pintar paredes, tocar violão... Estou exausto de pessoas que não se apaixonam por questão nenhuma. 
-- Lembrei de algo agora...
-- Eu sei o que você lembrou...
-- É mesmo? Então me diga.
-- De quando eu lhe disse que você era para mim um filme de Ingmar Bergman.
-- Exatamente. Tão intensa...
-- Tão intensa como um filme de Ingamar Bergman. Mas parece que agora que pintou o cabelo de castanho médio tem se tornado mais próxima das mulheres de Almodóvar. Isso é bom, não vai deixar de dizer espontaneamente palavras, mas vai apurar melhor os ouvidos aos rumores, é isso o que Almodóvar faz com a gente: antentar-se aos rumores. Como aquele trecho que você gostava de cantar e cantava atenta "A morena do rio, pela morena eu passo o ano olhando o rio...". (Cof! Cof! Cof!).  E sobre o qual me disse uma vez: "É o rumor do rio que denuncia se a morena vem, por isso ele diz que passaria o ano olhando rio, para que ele, o rio, contasse sobre quando ela vem".
-- Parece que você também se lembra daquela viagem em que eu só tinha levado o primeiro álbum dos Novos Baianos... Não precisa esfregar isso na minha cara depois de tantos anos! Eu realmente achei que teria outros álbuns no porta-luvas. Eu, bom, eu tinha certeza de os ter colocado lá...
-- Você sempre tem certeza, Djamila. Me lembro daquela viagem e da morena do rio, da morena do rio também me lembro. Pela morena eu passo o ano olhando o rio.
-- Você viu que ele morreu, né?
-- Quem?
-- Moraes Moreira.
-- Oras, quem está morto somos nós, Djamila! Deixamos um fascista ocupar o poder, um pau mandado americano trajado de juiz ser considerado herói nacional e temos a possibilidade de trocarmos tudo isso pelo almofadinha do Dória! Grande coisa temos nós que estamos vivos feito não?! Oras, Moraes Moreira se cansou disso aqui. E, você, meu amor, precisa aprender a cantar também em outro lugar.
-- Já me decidi. Mudarei de seção. A coluna está tomada, Alceu. Com os diabos!
-- Você tem sido persistente por todos esses anos?
-- Sim...
-- É um sofrer sem remédio, bem sabes...
-- É...
-- Sobretudo cansativo deve ser conversar com toda aquela gente que é paga para dar vida ao pessimismo e que não tem a mínima vontade de se despir de seu provincianismo. É preciso deixar de ser assim, Djamila.
-- Assim, como, homem? É possível deixar de ser a gente?
-- É preciso deixar de ser alguém que diz palavra com a franqueza de um homem com bafo de cerveja. Pare de querer quebrar a monotonia da existência das pessoas com sua franqueza. Ou isso vai ser um nunca acabar... (Cof! Cof! Cof!)
-- Você ainda mora naquele apartamento horroroso em frente ao Minhocão?
-- Sim...
-- E você não tem vergonha de falar da monotonia da existência de qualquer pessoa neste mundo?
-- Minhas queixas não cabem sob o teto de nenhuma casa que não seja esta, Djamila. Vou morrer aqui. (Cof! Cof! Cof!). E diferente de você, compreendi a minha ingenuidade.
-- O êxtase dos noviços...
-- Exatamente.
-- Os arroubos da juventude...
-- Perfeitamente.
-- O que pensa em fazer então? Deixar-se morrer?
-- Acenderei o candeeiro.
-- Você ainda tem isso, homem?!
-- Tenho suas fotos também.
-- Ah, Alceu... por que não me disse isso no começo da conversa? Quando eu já lhe revelava que ainda te tinha aqui... Agora já são quase onze horas da noite!
-- Porque você tem pressa, Djamila. E a vida não é um relógio. Devia saber. (Cof! Cof! Cof!)
-- Estou indo praí agora, imediatamente!
-- Vai haver discórdias! Você é uma polemista severa demais para entender que eu preferia o conservadorismo dos seus cabelos cacheados. (Cof! Cof! Cof!)
-- Você está com um acesso de tosse severo demais para que eu fique te ouvindo tossir pelo telefone, Alceu!
-- "Vem ter comigo com a pressa que empregarias em fugir da morte".
-- Hamlet.
-- Hamlet.

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