Janela Indiscreta


Em 1954, Alfred Hitchcock lançava o filme Rear Window (Janela Indiscreta) em que James Stewart interpreta o papel de um fotógrafo profissional obrigado a ficar confinado em seu apartamento, após ter a perna quebrada. A história, que vai ganhando movimento ao passo que a personagem começa a acompanhar de sua janela a vida de seus vizinhos  (daí o nome da película "Janela Indiscreta"), é para mim talvez o melhor filme da majestosa carreira de Hitchock. E muito do meu apego ao filme tem a ver com a forma como nós,  telespectadores, por meio do posicionamento da câmera, somos colocados para também acompanharmos os vizinhos pela perspectiva de Jeff (J. Stewart).

Mas por que venho recordar este filme agora?
Porque a vida imita a arte, e eu também!
Nesses primeiros dez dias de isolamento por conta do COVID-19, tornei-me, sem que eu quisesse me tornar, a Fernanda Stewart do meu condomínio.

Todas as manhãs, após preparar o café, levo minha xícara para a varanda, onde me sento num banco de madeira pintado por mim para me aquecer de Sol e ler meu livro de cabeceira. Daqui tenho a sensação de horizonte vasto e posso sentir o vento de março soprar em meu rosto. No entanto, daqui também observo meus vizinhos: as pessoas surgem para mim muito mais vezes do que eu gostaria que elas surgissem se elas, de fato, estivessem em casa. Eu as vejo violando a quarentena e elas me veem de pijama violando o sistema capitalista.

Nesses dez dias, chegaram à garagem em frente ao bloco em que moro mais sacolas de supermercado que pessoas. A classe média realmente resolveu assumir de vez sua aptidão histórica para o egoísmo e seu medo de morrer pobre. Sim, porque a classe média não tem medo de morrer. O que ela tem é medo de morrer pobre. E eis ai a diferença e o combustível de praticamente  todas as suas ações. Ela tem muito mais medo de faltar algo em casa do que de sobrar vírus e sangue em suas mãos.

Algumas pessoas descem do carro e, conforme me notam na varanda, constrangidas, encaram-me com ares de quem pede desculpas, cumprimentam-me detendo o breve gesto das mãos  e voltando o olhar rapidamente para o porta-mala de seus carros. Ávidas para que aqueles minutos de troca das sacolas do supermercado para o carrinho de mão deixem de ser eternos. Meu olhar as fustiga pela varanda.

A senhora de membros franzinos que passa e que eu sei que tem mais de 60 anos também me olha constrangida. E não só pra mim. Vejo-a caminhar com as pernas tomadas pelo reumatismo olhando para todos os lados a fim de saber quantos podem descobrir que ela está violando as leis que protegem a sua própria vida.

O síndico faz uma piada de mal gosto como todos os síndicos fazem, já que síndicos possuem o péssimo hábito de descontraírem até o ponto de seu bom humor ultrapassar os problemas do condomínio. O daqui disse que está estocando cerveja, o único álcool que lhe interessa. Percebo que ele fala mais para mim do que para o outro morador com quem conversa, pois o seu tom de voz entrega sua veia política e o gosto por ser observado.

Um casal de japoneses saem com suas máscaras e entram depressa no seu veículo. Possuem gestos tolhidos por baixo de luvas de borracha. Talvez sejam os únicos que já possuíssem máscaras antes da vírus chegar ao país.

O zelador trabalha há três dias em um talude de begônias  e hortênsias. Percebo que as pessoas que lhe surgem perto também hesitam, envergonhadas. Ele as cumprimenta e, vendo-se observado por mim, maneia a cabeça como quem diz "estou aqui porque preciso remover entulhos, mas essas pessoas, Fernanda, essas pessoas não sabem o quanto eu queria estar em casa".

A moça mal humorada que corria comigo na esteira da academia, continua mal humorada mesmo correndo ao sol, o que prova que o astro rei só cura quem quer ser curado. Ela, mesmo enquanto apenas caminha, dá largas passadas e eu não entendo muito bem de que bicho que ela tem medo. Apesar de possuir olhos fustigantes parece estar sempre sendo açoitada.

O homem de meia idade, cujo terno e gravata nunca saíram do seu corpo, agora caminha com roupas brancas e tênues. E eu quase não o reconheço sob os novos trajes. Vejo que é muito mais claro do que eu supunha, e que possui um aspecto vigoroso. Deve ter por volta de vinte e sete anos, mas a empresa para a qual trabalha lhe transformou antecipadamente num homem preocupado e rabugento de mais de quarenta. Agora, na quarentena, parece ter voltado a ser o que sempre fora por baixo do terno.

Uma mãe conversa com a outra pela janela pedindo pelo amor de Deus que o filho volte às aulas. Ela não sabe matemática e o menino está na fase das perguntas.

Aqueles que possuem cachorro marcam horários distintos para aparecem com os seus pets. A recomendação é que não haja proliferação entre eles nem que tenham filhotes, diz uma menina, sob o argumento de que sua mãe não aguenta mais tantos pelos pela casa.

Gente que nunca vi, porque vivia no trabalho, agora passa a existir para mim todas as manhãs.

Gente que sai pra fora só por alguns minutos, olha pro céu, faz o sinal da cruz e retorna para o casamento em que nunca deveriam ter entrado.

As mulheres continuam sendo as mulheres que lavam roupas.
Os homens continuam sendo os homens que lavam os carros.
Algumas mudanças vão demorar mais tempo para ocorrer, terão de ficar pra outro vírus modificar, comento com meu filho.

Ainda não há nenhuma Grace Kelly em perigo por aqui, sufocada por um forte acesso de tosse, pedindo para ser salva. Enquanto isso, sigo na esperança de que o vírus que está lá fora se torne menos inclemente após o nascer de cada dia. E torço para que os meus vizinhos vejam também a existência de outro animal veroz, sentado na cadeira da presidência, preparando-se para engolir a gente.

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