Crônica de uma comunista resfriada

Crianças atiram-se na piscina do condomínio, agitando a água que se propaga em sons pelas salas dos moradores atentos ao noticiário. Muitas outras jogam futebol. Meninas caminham de braços dados enquanto simulam a participação numa novela global. Aqui da janela do primeiro andar, meu filho escuta as gargalhadas dos seus colegas sem que possa desvencilhar-se da gripe e cruzar a porta que dá acesso ao hall e na qual, quem vem de fora, lê num quadrinho pintado por nós a mensagem: "aqui a vibe é boa". Estamos gripados, eu e ele, em meio a uma pandemia que parece ter vindo para nos ensinar a viver em sociedade. "Precisamos, portanto, manter a boa vibe, Pablo", sussurro ao seu ouvido sem que seus olhos percam o ar taciturno com que atravessam os vidros e mergulham na piscina.

Da escola, tenho notícias de que alguns poucos estudantes copiam a lição da lousa ou classificam a palavra coronavírus como um inimigo assustador. Substantivo simples, pequeno, invisível, mas mesmo assim tremendamente assombroso. Alguns docentes escolhem deixar as apostilas de lado e falar sobre a vida. É preciso viver! E mais: está nas nossas mãos, limpas e bem cuidadas, a vida. Nossa e de outras pessoas. Alguns professores seguem à risca seu conteúdo disciplinar. Estes, que há anos perderam a vida, seguem. Apenas seguem, cegamente.

Chamo meu filho a um canto do quarto, interrompendo seu olhar tristonho e lhe conto a história de quando me tornei comunista.

Eu tinha por volta de sete anos e estava contando aos meus primos como havia sido a ida com meus pais a um parque aquático. Eu falava com um entusiasmo tamanho que fazia do sofá um toboágua para assim simular o frio na barriga que havia sentido. Meus primos ouviam sem piscar, até meu pai, um já maduro sociólogo, surgir na sala e me chamar  num canto com um papo que jamais pude esquecer:

- Filha, pare de falar a seus primos sobre seus privilégios. Ter ido ao parque é algo muito legal, mas eles não puderam estar lá e você deve deixar imediatamente de desfilar suas aventuras, pois o justo seria que  eles pudessem sentir a verdadeira adrenalina do toboágua sem que seja pelo sofá da sua avó. Estamos entendidos? 

Na época, eu não sabia o que significava a palavra privilégio. Eu sequer sabia que era privilegiada por ter ido ao parque e meus primos não. Mas eu pude entender naquele dia o que o meu pai queria me dizer: é preciso pensar nos outros. E foi por aí que comecei a conversa com meu filho.

Inúmeras outras vezes durante a minha infância meu pai foi me educando a pensar nas minhas ações e suas consequências para a coletividade. Inúmeras outras vezes também eu derrapei nos seus ensinamentos e me preocupei mais comigo do que com os outros. E ele, claro, passou boa parte da vida me corrigindo. Mas como cantou Clube da Esquina, eu era tudo que podia ser na estrada, naquele período de minha vida. Chegara a hora, portanto, de eu repassar o ensinamento recebido ao meu filho. A pandemia do Novo Coronavírus era então a porta de entrada para aquilo que eu havia aprendido na estrada com meu pai e que devia introduzir ao menino de olhar melancólico que se parecia tanto com a menina que eu fora aos sete anos.

Comecei uma conversa com o Pablo então a partir dessa relação básica que aprendi com meu pai: é preciso pensar no coletivo. E nesse momento, pensar no coletivo é ficar em casa.

- Mesmo que aquelas crianças não estejam pensando no coletivo, mãe? - interrogou meu filho.
- Sim, mesmo assim. A vida delas e talvez a de alguns familiares delas estão em nossas mãos.

Ele permaneceu com seu olhar triste. A minha história não havia sido suficiente. E eu insisti em lhe dar outros exemplos. Pois este é momento em que cai por terra todas as políticas públicas que não pensaram na coletividade como a aprovação do teto de gastos em saúde, a insistência na privatização dos serviços essenciais, a ausência de transportes públicos adequados para atender a demanda de uma cidade como São Paulo, as salas de aula das escolas públicas superlotadas. E até a eleição de um suposto patriota que fez sua campanha por meio de propagandas que defendiam a proteção de bens  materiais e pessoais, não de pessoas. Tudo isso dito numa linguagem que pudesse ser compreendida por uma criança de oito anos, que pudesse fazer meu filho entender que nós estávamos fazendo o inverso que todas aquelas pessoas, pois estávamos colocando em prática o bem estar comum. E mais: que não era preciso leis que nos prendessem em casa, pois faríamos isso pela vida da comunidade, pois éramos comunistas.

Aos poucos ele foi entendendo que nós não estamos no grupo de risco, mas que nossas ações representam risco a outras pessoas. E que sempre, até antes do Coronavírus surgir para nos dizer isso, o mundo havia sido assim: nossas ações e inações possuíam impacto social. Não agir, quando se deve agir, garante a ordem hierárquica em que ricos se sobrepõem a pobres, brancos a negros, homens  a mulheres, heterossexuais às demais possibilidades de amor.

- Todas as greves de que sua mãe participou tivera o mesmo princípio que o Novo Coronavírus faz emergir agora: o de que a vida está em nossas mãos. Pois é preciso levantá-la para pedir a palavra, carregar uma bandeira vermelha e um cartaz que cobre e questione as autoridades sobre quem mandou matar Marielle. Agir, de modo a saciar anseios pessoais, como brincar no prédio com muitas outras crianças ou estocar alimentos ao ponto de esvaziar as prateleiras do mercado, têm impacto social negativo, porque são ações em que se tenta salvar a si mesmo e não a comunidade. Então mais uma vez o princípio é o mesmo: a vida nossa e dos outros está em nossas mãos. E, agora, é preciso mantê-las junto ao corpo, não levá-las ao rosto e deixá-las limpas e longe de quem pode morrer por meio delas.

Olhei bem nos olhos dele. E, com o olhar castanho que meu pai me deixou como herança junto a alguns bons exemplos e leituras, disse:

- Parabéns por estar em casa e ceder alguns dos seus dias para que outras pessoas possam viver dias a mais. Viva la Comuna, filho!

E ele gritou logo depois:

- Viva la Comuna, mãe!

A vida sempre esteve em nossas mãos.


Comentários

Postagens mais visitadas