Declaração de Bens

"Hoje é o último dia para fazer a declaração de bens no portal da prefeitura, Fernanda. Você já esqueceu de fazer ano passado. Vai acabar ficando sem salário!", me alerta uma amiga hoje pela manhã.

"Acontece que eu não sei como fazer esses tipos de declarações... precisa saber a placa do carro de cor, na cabeça?", questiono.

"Fernanda do céu, abre esse computador, menina, como vc pode ser tão esperta pra algumas coisas e, aaaah, deixa pra lá", ela me desperta.

"É que eu só sei fazer declaração de amor. Eu tenho um blog inclusive em que declaro todos os amores que já tive um dia e os que inventei que tinha. É muito difícil pra mim contar pro governo que com 32 anos tenho menos bens materiais que amores. Sabe? Amei muito e com uma intensidade avassaladora. Meu carro representa apenas algumas lembranças e minha casa tem tantos quadrinhos feitos por mim que acho que os bens são os quadros, pois é a casa que está entre as pinturas e não o inverso. No entanto, veja você, minha amiga, que o governo nunca quis saber de minhas poesias... ele me pede números, e pior: também pede que eu faça o mesmo com meus alunos. Mas eu cursei Letras, minha amiga, Letras! O meu maior bem é ter um dia lido García Márques. Tem essa pergunta lá? Você não acha que seria mais interessante que o governo me perguntasse qual poema eu li hoje antes de ir pra escola? Sim, pois o governo tem de saber quem toma café com leite antes de trabalhar e quem toma café com Neruda antes de pegar a chave do carro. Mas veja vc que o governo quer apenas saber do carro. Eu teria inúmeras outras sugestões para esse governo, mas vc sabe que eu nunca seria eleita por este país, porque o mundo real quer saber a metragem do meu apartamento e não se eu costumo dançar bolero na sala... Enfim, você pode fazer pra mim?"

Ela se recusou, com toda a razão, e eu tô aqui agora fazendo o raio da declaração dos bens que não são bens.

O meu bem é a escrita. A palavra.

E o governo pra mim é uma instituição que não sabe fazer perguntas.