Delonga

De manhã, eu boto a xícara na mesa e olho a cortina da sala de estar. Eu penso se levanto e abro a janela ou se fico e tardo o que o dia tem pra mim. Eu fico. O café com leite amorna. Eu bebo de pouquinho até ter certeza de que ele não queima de dúvidas como eu. Vai o primeiro gole e o dia já pode entrar. Levanto decidida a assumir a data do calendário que alguém, perdido, criou num dia de desespero e vontade de ver seu amor chegar numa estação de trem. O hoje entra pela janela e eu disfarço minha eterna obsessão por ontens.

À tarde eu fecho todos os vidros, portas e cortinas. Coloco meu grito para dormir e puxo um CD do Chico cantando com a Bethânia alguma coisa assim:  Não chore ainda não/ que eu tenho a impressão/ que o samba vem aí/ é um samba tão imenso que eu às vezes penso/ que o próprio tempo vai parar pra ouvir. Mas o tempo não para pro samba não, Bethânia. Como não parou pro Cazuza viver pra sempre. Como não vai parar pro Chico também. O tempo é o nosso lamento.

De noite, eu gosto de ligar pra ele. Eu gosto de ouvir a voz dele a perguntar o que eu quero com ele. Eu não sei. Eu quero ligar pra ele à noite olhando pro céu. Ele pergunta como eu tenho passado. Eu respondo "passando". Eu ando passando. As dores passando. O ontem passando. Mas o meu gostar de ouvir ele dizer qualquer coisa à noite não, não anda passando. Aliás ele não anda passando desde quando passou por mim. Nem eu sei se quero que ele passe. À noite eu costumo não saber.

"Tenho de dormir agora e você acorda cedo amanhã" é o jeito que ele tem de me soltar. Ele não entende que  eu nasci pro ontem, que eu cresci pro céu que ainda não anoiteceu do outro lado do planeta, pro lado do que ainda é o que foi. Ele não entende que eu atraso às horas, os dias, a vida. 

Ele não entende que adiando o nosso amor, eu atraso o nosso fim.

Comentários

Eliene disse…
eu atraso o fim

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