Daqui

"Saia rendada, pendurada na varanda, tem a cor da esperança de um amor que não passou. Pois todo dia lembro sempre da janela o amor que dei pra ela: tão bom que em mim ficou."

(trecho de "Sonhei de Cara", na voz de Alceu Valença, composta por Don Tronxo, Ruben Valença Filho e Alceu Valença)

Daqui dá pra ver a flor vermelha sem perfume que o ontem levou. Dá pra ver o dia em que ele escondeu as mãos nas costas e ficou a enrolando em dicas para ela adivinhar o que ele tinha ali. Dá pra ver as três respostas equivocadas e o riso dele sobre cada ponto interrogativo dos olhos dela. "É o maior bombom do mundo?!". "É um relógio que desperta quando é hora da gente se ver?!". "É um pincel que desenha o futuro?!". Não, não. Era todo o jeito dele de ficar até hoje no quarto dela através de uma rosa de plástico, daquelas que exalam perfume por um tempo... Tempo que agora é ontem. Ontem que agora é hoje. Daqui dá pra ver o ontem. Daqui dá pra ver a rosa.

Daqui dá pra ver o livro com um marcador de páginas metálico que pendura um coração com nome dela pra fora das páginas. Presente dele também. Dá pra ver o jeito engraçado de vergonha que ela ficou quando ele perguntou se ela sabia o que era aquele pedaço de metal com um coração pendurado. Ele gostava de perguntar e ela de errar todas as respostas. Pensou que era um prendedor de cabelo, testou naquela hora o objeto fino, e o riso dele apareceu lá outra vez. "Não, não é um prendedor de cabelo". Era o coração dele para sempre no meio das páginas dos livros que ela leria. Sempre que agora está abaixo dos olhos dela enquanto ela lê qualquer história e depois mistura às suas.

Daqui dá pra ver a coleção de DVDs musicais dela. Ney Matogrosso, Cazuza, Cássia Eller, Fagner, Renato Russo, Titãs, Gabriel Pensador, Zé Ramalho, Oswaldo Montenegro... e Roupa Nova. Dois DVDs do Roupa Nova. Ela  que só tinha dito uma vez a ele que gostava da banda. Uma vez para que ganhasse os dois DVDs que ela menos se cansava de escutar. Daqui dá pra ver a primeira vez que ela cantou junto com as caixas de som o trecho que ela mais gosta:  "Coisas do passado são alegres quando lembram novamente as pessoas que se amam.". Daqui dá pra vê-la depois de tantos ontens cantando hoje o mesmo trecho de música dantes.

Daqui dá pra ver o mesmo personagem de desenho animado que ela tem espalhado pelo quarto. Em cima da estante de livros, lá está ele em pelúcia; sobre o baú, a mesma criaturinha em miniatura sorrindo pra ela enquanto sonha; em meio aos livros, um álbum de figurinhas repleto de imagens do sorridente personagem. Em todos eles, o eterno sorriso de garoto de um ex-amor, quem deu a ela tudo que a industria lançava do ídolo animado. Um ex-amor de hoje. Um amor de ontem. Ontem que dá pra ver hoje. Hoje que dá pra ver ontem.

Daqui dá pra ver um retrato. É ela mais jovem, menina a transbordar de alegria no tempo em que ele a esperava na saída da faculdade. Daqui dá pra vê-la descendo os corredores correndo, derrubando os cadernos, pensando em pegá-los ou não pegá-los. Daqui dá pra vê-lo olhando o relógio andares abaixo. Esticando o pescoço, balançando os pés no ritmo da música que toca na rádio. Daqui dá pra ver um através do outro, outro através de um, amores através dos dois.