Uma poça

Assim que a chuva descansou seu escândalo de lágrimas, a personagem bateu o portão para ir atrás de uma poça. Dois quarteirões de sua casa, no centro duma metrópole, num pedaço de piso sujo em frente a uma porta enferrujada de um bar que fechou seu hospício, ela sentou. Entre cheiros de rato morto a urina de qualquer um que ali tivesse deixado seu desespero, ela estacionou sua alma. A sua frente, a sua busca: uma poça. Sozinha, cheia, bem ali no "não" de um passo que só pisa em "sim", uma poça. Uma poça perfeitamente posta no melhor lugar da calçada. Um incomodo. Uma pedra líquida a fazer as pessoas  saltarem. Um resto de nuvem que já foi mar, rio, lagoa ou poça. Uma poça quieta e surda para a ameaça de um pé. Um retrato puro de uma lágrima de São Pedro no chão. Um contato com seu inimigo concreto: o sólido asfalto construído por um homem que não sabe nadar. Uma poça. Um grito de trovão que desistiu de esbravejar e chorou. Uma poça. Uma poça e ela. Ela e uma poça e os odores da cidade grande. Uma poça que se vai aos poucos nos sapatos e calças de quem se esquece de olhar para baixo. Uma poça no meio do destino de alguém que não vai a lugar algum e que também não voltará. Uma poça que vai demorar horas para se secar por não ter se lembrado de levar toalha quando resolveu cair do céu. Uma poça para ela pisar e mesclar suas doses de surra em mim. Uma poça para que a minha personagem entenda o sabor de ser lama em asfalto. Uma poça na qual ela despeje a minha inveja por não ser uma poça.

Comentários

ana disse…
Adorei Fer!beijos
Sandra disse…
Uma poça pra te inspirar a escrever e nos fazer viajar em suas palavras.
Abençoada chuva!

Beijo grande, menina linda.
Eduardo Alvarado disse…
Chovera. Dissipara a nuvem pairada sobre a cidade e sumiu num passado recente, dessas sobraram poças. Cair na poça não posso, pensara ao passar pelas pessoas do passeio público. Pousara os passos sobre o chão com mais cuidado, o cuidado de pisar em ovos, nesse caso, poças. Pesara a valia da pressa nos ponteiros e depressa pinçara a idéia de não apressar-se em chegar. Pulou poças aos montes, contornou outras tantas e em uma parou. Poça pequena, impassível e paciente, ali, parada. Era só uma poça, mas refletira seus olhos e a cativara. Possibilitando ao pessimismo cinza do dia, um poema. Tirou os sapatos, tomou posse da poça, pisou e purificou-se. Levando consigo um tanto da poça, prosseguiu seu caminho pensando que, talvez, amores são poças.
Fermina Daza disse…
Amores são poças...
2edoissao5 disse…
lembrou-me os tempo de criança que depois da chuva eu ia pulando nas poças, e isso me dixava tão feliz...

beijo!
Marcos disse…
Tem gente que fica na poça a vida toda... mas ainda bem que ela por si só seca e acaba.... mas essas pessoas acham outra rapidinho...

bjs

e you tube do comercial coloco depois...
Glauber Ataide disse…
Oi Fernanda,

Não sei por qual razão, mas este post e os comentários me remeteu à letra de "Giz", da Legião. Essa coisa de poça, chuva, amores... ("Eu rabisco o sol que a chuva apagou")

Legal você estar lendo "A interpretação dos sonhos", é um dos meus favoritos (tanto o livro quanto o próprio Freud).
Fermina Daza disse…
SO SAD, puxa, agora foi vc quem me lembrou do meu tempo de criança quando eu também pulava poças, ou fazia da água que corria tobogã para descer rua abaixo! rsrs

MARCOS, tem gente que fica na poça a vida toda... Mas poxa, a minha poça é do bem... acho!

GLAUBER, do Twitter vc veio parar aqui? Que supresa! Adoro "Giz" do Legião. Essa música já foi até tema de um trabalho de faculdade que fiz, e um dos motivos da minha escolha por ela foi justamente esse trecho que vc citou. O livro "A interpretação dos sonhos" é bem teórico, mas também estou gostando, apesar de eu preferir a literatura brasileira de Machado, Clarice etc. A leitura de Freud está funcionando para mim como uma auto-análise que me faz muito bem, saca?

Beijooos! =*
Unknown disse…
Estava na foça, quando derrepente encontro a simplicidade de uma poça que me faz refletir.

Obrigado!
Madame Mim disse…
Olá Fer,
Achei tão bonita esta história da poça, tão necessária, mas tão esquecida, realmente não tinha parado para pensar em tudo isso, no choro, nos desvios e até na solidão...
Nas lágrimas de São Pedro...
Vc é tão criativa e tão sensível, menina bonita...
Parabéns pelo texto!
Grande beijo e boa semana!
Ravi Barros disse…
Eu admiro tua capacidade de escrever sobre coisas tão simples, e fazer de uma poça um espetáculo aos seus olhos... é muito bom ver a vida dessa forma!
grande beeijo querida!
Fermina Daza disse…
DIOGO, bem vindo! Fico feliz que alguma frase no texto tenha levado a vc reflexões. ;)


ANDREA, tô indo lá lhe visitar, saudades!


RAVI, poxa... obrigada! Adoro o mínimo do mundo... srsrsrs

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