Clarice

Devo ter tido sempre medo de Clarice Lispector. Fugi da escritora durante anos. Quando tocava num livro seu, me vinha uma certa sensação de dor. Parecia-me que lá dentro continha alguma coisa de que eu não gostaria de saber. Puxei da estante diversas vezes "A hora da estrela" e nunca consegui prosseguir a leitura. Ou eu ficava embrulhada nas primeiras páginas, ou me doía o corpo de pensar e sentir ao mesmo tempo - atos que sempre foram tão difíceis de se realizarem simultaneamente em mim. Nunca soube quando estaria forte para ler Clarice. Algo me dizia que eu deveria lê-la quando estivesse sólida e soubesse controlar meus sentimentos pela mente. São oitenta e sete páginas que me amedrontam como um espelho a revelar o que mora dentro da gente. 
Aos poucos, porém, com a cabeça de quem olha reto, sempre reto,  acho que ando perdendo esse medo...Cheguei à página cinquenta e nove do livro, mesmo levando duas semanas para isso. Ando conseguindo enfrentar as palavras da autora. Devo estar, de alguma forma, amadurecendo...

"Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos. Experimentei quase tudo, inclusive paixão e o seu desespero. E agora só queria ter o que eu tivesse sido e não fui."

("A hora da estrela", Clarice Lispector)