O sorriso

Há uns anos vividos, quando eu era bem mais novinha e ingênua do que sou agora, no auge dos meus dezenove anos, no meu primeiro bom  emprego no Tribunal de Contas de São Paulo, ali no centro da cidade eu almoçava num boteco-bar-restaurante-padaria chamado Buraco. Ok, não preciso mais descrever o local.

Todos os dias, com meu vale-refeição de seis reais e mais uma amiga que dividia aquele prato de pedreiro comigo, eu me sentava na mesma mesa, ao lado direito do restaurante, em frente à televisão; e ele, duas depois, ao lado esquerdo.

Ele quem?
O dono de um sorriso que me fazia almoçar num lugar chamado Buraco.

Ruivo, simpático, lindo e ...CASADO! É, ele era casado. Só muito depois descobri o infortúnio, quando minha inspiração levou o sogro para almoçar e o escutei falando do filho. Casado e com um filho, de quem ele se referia como se comparasse a estrelas. Sorrindo, sorrindo e sorrindo.

Eu nunca tinha notado a aliança na mão dele antes; meu olhar, insisto, era seduzido somente pelo seu sorriso. E, é claro que ele sabia de tudo. Opa, de quase tudo! De tudo, na verdade, ele nunca soube.

Todos os dias, nossos olhares cruzavam-se da mesma maneira. Eu entrava, e ele já estava lá, sentado, com seu almoço quase esfriando (porque eu sabia muito bem que ele também me esperava para almoçar), enrolando as garfadas no prato. Sabe aquela piscadinha que substitui o "Oi, quero te pegar"? Pois bem, era com ela mesma que ele me cumprimentava. Como uma menina tímida de dezenove anos, eu correspondia às segundas intenções daquele pestanejo com um sorriso e um olhar apaixonado, além de fingir que ria do que eu nem estava atenta nos assuntos da minha amiga, olhando de dez em dez segundos na direção da mesa dele. Por vezes, ficava minutos sem desviar o olhar. Absorta naquele sorriso.

Porém, certa vez, meu ruivo veio até a minha mesa com um papo de que aquele dia era o seu último em São Paulo, pois aquele sorriso estava se mudando de cidade, de trabalho, e de restaurante! A minha reação foi como a de quem perde, em segundos, o homem da sua vida. Soltei um "Como assim?!", querendo gritar "EU TE AMO, TE DESEJO, TE VENERO, NÃO FAZ ISSO COMIGO, PELAMORDEDEUS!". Mas, para a minha surpresa, logo em seguida recebi seu convite para esperá-lo na porta do mesmo bar às 17h30. Passaríamos o fim daquela sexta-feira e daquele relacionamento entre meu olhar e o seu sorriso juntos, pensava ele.

Pensava ele, pois essa é a melhor parte da história: eu não fui!

Eu já o tinha perdido para a mulher dele anos atrás, eu era nova e apaixonada, e sabia muito bem o que eu faria se por acaso não só o sorriso dele me fascinasse. Eu não me cansaria de querê-lo só pra mim.
Fiquei com medo. Fraca, não fui.

Talvez ele não merecesse um poema, nem abraços, nem beijos meus. O que é difícil é admitir que o sorriso, esse sim, merecia o mundo sem fim.

Comentários

Anônimo disse…
Vez ou outra na vida nos deparamos com sorrisos, olhares e tantas outras coisas mais que nos fazem permanecer em buracos por algum tempo, não é? Eu bem me lembro dos meus... rsrsrs. Qualquer dia escrevo sobre um buraco meu pra vc ver que não é a única.
E também é nos buracos que produzimos pérolas literárias... kkkkk. Lindo poema!
Beijão e bom fim de semana.
Unknown disse…
Lindo..... penso que quando éramos crianças um mesmo sorriso como este já havia a enfeitiçado e me recordo dos mesmos sentimentos que a vida nos traz!

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